O incêndio que ocorreu no Museu Nacional (MN) em setembro do ano passado foi uma mostra da indiferença governamental com os museus universitários, o que culminou no retrocesso para a ciência do mundo. “As peças que estamos resgatando vão desde o paleolítico e neolítico europeu, africano e asiático, até as coleções ameríndias e outras mais recentes. Aqui está a história do mundo” disse a arqueóloga Angela Maria Rabello em entrevista ao jornal Época.
Mesmo que em apenas 3 meses de busca os especialistas tenham recuperado 1,5 mil objetivos das exposições, a administração do museu estima que 90% das 20 milhões de peças e documentos que compunham o quinto maior acervo do mundo tenha sido perdido. Objetos importantes para a história antropológica e científica da humanidade estavam presentes na coleção. Dentre eles, o fóssil e grupo de Luzia – uma das primeiras mulheres e grupos a habitarem a América do Sul – cujo descobertas reorientaram as pesquisas sobre a ocupação do continente. Felizmente, o fóssil foi encontrado.
Além disso, o museu também continha arquivos fundamentais para o estudo da cultura indígena, como gravações de rituais, conversas e cantos coletados antes de 1960 em tribos que algumas já foram extintas. Artefatos da cultura Marajoara de relevância para os estudos da pré-história brasileira - cerâmicas decoradas com formas antropomorfas, humanas, animalescas e desenhos – também compunham o acervo. Além de exemplares de fósseis de dinossauros brasileiros de grande porte. (Conheça o museu antes do incêndio)
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), estima que serão necessários 10 anos para a recuperação do museu carioca. Entretanto, de acordo com especialistas alemães, Ulrich Fischer e Nadine Thiel, a rapidez para o resgate de objetos é essencial "A cada dia que passa, os objetos ficam cada vez mais danificados devido ao mofo, à umidade, à chuva e possíveis desabamentos de paredes", afirmou Thiel.
Todavia, para que isso ocorra rapidamente são necessários recursos. Desde 2014, o Museu Nacional vem recebendo recursos insuficientes. Em 2017, dos 550 mil reais necessários para manter o museu, apenas 373 mil foram repassados para a instituição, foi o que ponderou o ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, em coletiva de imprensa realizada no Palácio do Planalto dois dias após o incidente.
Essa carência de recursos gerou a falta de manutenções e o adio de reformas necessárias, acarretando não só no incêndio, mas também na morosidade para as restaurações dos objetos achados.
A Universidade Federal do Rio de Janeiro – órgão responsável pela administração do museu – alegou que desde 2004 está solicitando recursos para as reformas. Todavia, só tiveram respostas positivas no ano do incêndio. Visando o aniversário de 200 anos do Museu Nacional, a instituição receberia uma verba de 21 milhões de reais do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a revitalização do prédio histórico, incluindo o acervo e espaços de exposição. Contudo, foi tarde demais.
Mesmo com o alerta do secretário de Energia, Indústria Naval e Petróleo do Rio de Janeiro, Wagner Victer, ainda em 2004, que o museu poderia pegar fogo, as consequências da negligência do estado chegaram antes que a primeira parcela do investimento do BNDES que seria entregue no mês que ocorreu o incidente. Com isso, 200 anos de história e pesquisa viraram fuligem.
O Museu Nacional não é o único museu brasileiro administrado por universidade federal que vem sofrendo com a diminuição de recursos e com a indiferença do estado. Desde de 2017, quando entrou em vigor a Emenda Constitucional 55 (antiga PEC 241), que congelou o teto de gastos limite do governo federal por 20 anos, a educação e a cultura brasileiras vêm lidando com a restrição orçamentária que dificulta melhorias nos setores.
De acordo com o acadêmico de museologia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Leonardo Tavares Alencar, “congelar os investimentos de algo que não atinge o ideal estabelecido constitucionalmente é inadmissível” pontuou Alencar. O estudante se refere a PEC 150/ 2003 que determina que, anualmente, 2% do orçamento federal, 1,5% dos estados e 1% dos municípios, coletados por meio de impostos, sejam aplicados diretamente em cultura. Entretanto, de acordo com a terceira edição do Sistema de Informações e Indicadores Culturais, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 0,3% dos investimentos públicos na última década foram em cultura.
Além disso, segundo o diretor do Museu Antropológico, Manuel Ferreira Filho, que ocupa o cargo da chefia administrativa há mais de quatro anos no museu goiano, caso a PEC 55 continue vigente nos próximos 18 anos, conforme o previsto na ementa, a cultura nacional será afetada gravemente, em especial os museus.
“Todos os museus podem fechar. É necessário mudar isso”, levantou Filho.
O museu dirigido por Manuel Filho também corre o risco de fechar. De acordo com o diretor, já são visíveis consequências do corte de gastos.
“É necessário urgentemente uma reforma do Plano de Segurança da Salvaguarda Material e do Pessoal a fim de uma proteção contra incêndios”. ponderou Filho
O acervo do Museu Antropológico, localizado em Goiânia, é composto por 160 mil peças em três reservas - reservas arqueológica, etnográfica e documental. Segundo o museu, são encontrados objetos descobertos através de pesquisas realizadas ao longo de mais de 30 anos em áreas de atuação como Antropologia Social e Cultural, Arqueologia, Etnolinguística, Educação Indígena, Ação Educativa, Museologia, Conservação, além do acervo documental, apresentado em suportes diversos. Para o diretor, a ocorrência de um incidente no Museu Antropológico, assim como ocorreu no Museu Nacional, também seria uma calamidade para a cultura e educação.
Enquanto essa reforma não ocorre, para evitar que culmine no museu goiano uma tragédia assim como ocorreu no museu carioca, de acordo com Manuel, está sendo projetada a construção de um novo espaço do Museu Antropológico visando todas as leis internacionais e planos nacionais museológicos. Entretanto, para que isso ocorra é necessário a abertura de editais e a aderência desse por empresas. Por conta disso, não há data prevista para a reforma necessária.
Os museus administrados por universidades federais dependem de editais para seus funcionamentos e para a efetivação de reformas necessárias. Todavia, explica o diretor do museu, que diferente do Museu Nacional, fazer reformas é mais fácil na maioria dos museus universitário. Isso se põe, pois nesses museus os prédios não são tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Dessa forma, o processo para realização de reformas necessárias é menos moroso na parte burocrática, mas o tempo para solicitar recursos, ocorrer a abertura de editais e repasse para as instituições é o mesmo.
Segundo o especialista em museologia e coordenador do Museu Antropológico, Adelino Adilson, os museus universitários têm fundamental importância para a formação de profissionais, realizações de pesquisas para a comunidade nacional e internacional e, também, é meio de interação social. Sendo assim, abrange ensino, pesquisa e extensão que são fundamentais para toda a sociedade. Dessa forma, para o diretor, a morosidade para o repasse de verba para essas instituições causa retrocessos para a sociedade em geral, já que é um local de fruição da cultura.
“Os editais não podem ser o principal fornecedor financeiro para essas instituições com tamanha importância” afirmou Adilson.
Afim de mudar essa realidade dos museus universitários ocorreu no fim do ano passado, em Belo Horizonte (MG), o encontro da Rede Brasileira de Coleções e Museus Universitários. A principal pauta do encontro – que teve presença de mais de 80 museus universitários – foi o debate para a criação de uma rubrica específica dentro do então Ministério da Educação e Cultura (MEC) para a manutenção dessas instituições. Caso o repasse das verbas continue junto com o das universidades, é de interesse da Rede que ocorra a criação de uma pasta orçamentária própria, explica Maurício Cândido, coordenador da Rede Brasileira de Coleções e Museus Universitários.
Para o coordenador da Rede, a criação dessa pauta e a efetivação será o freio do cenário de anomia. “Os museus universitários são absolutamente invisíveis e dependem quase que exclusivamente da política interna de cada universidade para a destinação de recursos que garantam sua sustentação, através da política de editais. Com isso, nossos museus teriam mais estruturas para se manterem” afirma Maurício.
Júlia Fontes para disciplina de Webjornalismo